SIMONE JUDICA - SÃO-ROQUICES

OS DISCÍPULOS DO CAPITÃO SYMPHRÔNIO

 

Por: Simone Judica 

A Delegacia de Polícia de São Roque, no início do século XIX, funcionava na Rua Enrico Dell’Acqua (Arquivo Histórico Digital de São Roque. Disponível em http://www.arquivosaoroque.com.br)

 

 

Barulhos de ontem

Por volta de cem anos atrás, a Delegacia de Polícia de São Roque, à época estabelecida na Rua Enrico Dell’Acqua, era comandada pelo Capitão Symphrônio A. e Silva.

Sabe-se pouco sobre ele. Não era de São Roque e veio para cá nomeado para o cargo de Delegado de Polícia. No início do século passado, ao contrário de hoje, não era trabalhoso manter a cidade em ordem. O índice de criminalidade era insignificante e os delitos giravam em torno de vadiagens, pequenos furtos e desinteligências. Eventualmente ocorria um homicídio, um roubo ou seduzia-se uma donzela, obrigando-se o malfeitor a casar-se com ela.

Crimes de trânsito não havia porque raros eram os veículos a trafegar pelas ruas estreitas do Centro, por onde passavam charretes e carros de boi, assim como o tráfico de drogas era inimaginável naqueles tempos. Os menores também não eram infratores, pois viviam atrelados às rédeas curtas dirigidas com pulsos firmes pelos pais e professores, de modo que suas ações mais reprováveis não passavam de peraltices e malvadezas inocentes.

No ano de 1918, porém, um caso tirou o sossego do Capitão Symphrônio. Pais de família foram à Delegacia de Polícia dar-lhe parte de fato preocupante: diversos rapazes da terra estavam, cada vez mais, dedicados à prática de fazer serenatas às moças da cidade. Assim, postavam-se sob as janelas do casario, fossem abastadas ou modestas, e punham-se a tocar e a cantar noite adentro.

Serenata ao luar (reprodução)

O atrevimento custava o sono dos pais, das mães e das tias zelosas. Não se dormia devido ao barulho e também à preocupação, afinal, pairava no ar, além da melodia, a suspeita de que as jovens poderiam ser seduzidas.

Não se soube se os moços queriam apenas se divertir e cantar, abrir caminho para declarar-se às eleitas de seus olhares e corações ou se, no fundo, intentavam alguma manobra sedutora mais ousada e, quiçá, condenável.

Capitão Symphrônio parece não haver se debruçado sobre o caso a ponto de desvendar as reais intenções dos cantadores e tocadores. Decidiu, apenas, acabar com aquele barulho!

Afinal, ordem era ordem e precisava ser mantida! E exatamente para isso que o Capitão Symphrônio estava aqui!

Se cantar pelas ruas e sob as janelas incomodava alguns, a outros agradava. As opiniões dividiram-se. Mas, por fim, a repressão venceu o romantismo, a arte e os arroubos da juventude.

Proibir serenatas era impossível, pois não era crime. Perturbar a ordem, o sossego e a segurança e molestar famílias, todavia, poderia ser alvo de enquadramento nas vetustas disposições do Código Criminal do Império, então em plena vigência.

Assim, em 5 de maio de 1918 o Capitão Symphrônio A. e Silva expediu um comunicado oficial à população são-roquense, o qual rezava que, …como medida de ordem e segurança pública fica proibido fazer serenatas em São Roque, de domingo a sexta-feira. A polícia só concederá licença para serestas aos sábados, mediante uma ordem escrita, com os nomes das pessoas que a solicitem.

– Onde já se viu uma postura autoritária e descabida dessas? A autoridade policial exigir requerimento formal, protocolado na Delegacia de Polícia, até mesmo de um moço apaixonado, para poder fazer serenata a sua amada?

Talvez o Capitão Symphrônio fosse um homem desiludido quanto às coisas do amor, insensível ou apenas não pudesse com barulho.

Independentemente do motivo do Chefe de Polícia, essa história nunca me soou bem e confesso que, desde que soube desse episódio, antipatizo-me com o tal Capitão Symphrônio e vira e mexe recordo-me dele com certo rancor e pego-me a pensar que ele era feliz e não sabia…

– Já pensou se ele houvesse conhecido o repertório musical que se ouve no último volume, nos dias de hoje?

Barulhos de hoje

Nesta semana, a Prefeitura da Estância Turística de São Roque divulgou uma nota para informar que a Divisão de Fiscalização intensificará as vistorias aos estabelecimentos comerciais para averiguar a regularidade do uso de equipamentos sonoros utilizados nas portas ou em frente aos estabelecimentos.

A medida visa atender a diversas denúncias encaminhadas à Prefeitura contra o uso inadequado dos instrumentos sonoros.

Na realidade, a obrigação de fiscalizar o volume e a disposição dos aparatos de som nos estabelecimentos comerciais não é novidade. A Lei Municipal nº 3.381, de 27 de novembro de 2009, que regulamenta o uso dos carros e equipamentos sonoros no Município, disciplina os limites, locais e horários permitidos para o funcionamento desse tipo de sonorização.

Entre as regras estabelecidas pela lei, está a vedação à propaganda, publicidade ou propagação de som, por meio de equipamentos sonoros, como microfones, caixas acústicas, amplificadores de som e similares nas áreas frontais de qualquer estabelecimento, seja de que natureza for, salvo quando voltados para o seu interior.

Os carros de som também têm sua circulação restringida por essa lei, ao menos na teoria, até agora.

De acordo com o texto legal, esses veículos de som volante são proibidos de circular na área central da cidade. A lei é taxativa no elenco das ruas e avenidas onde a circulação é vedada: Avenida John Kennedy, Rua Alfredo Salvetti, Rua Enrico Dell’Ácqua, Rua Dr. Stevaux, Rua Pedro Vaz, Avenida Tiradentes, Rua Rui Barbosa, Rua Sete de Setembro, Rua Germano Negrini, Rua XV de Novembro, Rua Monsenhor Silvestre Murari, Rua Padre Marçal, Rua Duque de Caxias, Rua Sotero de Souza, Rua Benjamin Constant, Avenida João Pessoa, Rua Marechal Deodoro da Fonseca e Rua João XXIII.

A proibição também se estende ao raio de cem metros de escolas e repartições públicas como fóruns, paço e Câmara Municipal em seus horários de funcionamento, além de hospitais, clínicas de repouso e recuperação, asilos e velório municipal, templos religiosos e manifestações cristãs em vias públicas em quaisquer horários.

A lei é minuciosa, ainda, em relação aos limites de velocidade dos carros de som e às exceções à proibição e à restrição de uso desses equipamentos.

Desnecessário ressaltar a meus leitores que a lei não é obedecida e a fiscalização tem sido das mais tímidas. Enquanto escrevo esta coluna, na tarde de sexta-feira (06), a cada pouco ouço veículos sonorizados a passar na área central fazendo propaganda de ao menos três estabelecimentos comerciais da cidade.

A mim e a muitas outras pessoas, os carros de som a circular pelas ruas de São Roque não incomodam os ouvidos ou a rotina, mas, sim, a fluidez do trânsito, e apenas são mais um ingrediente na composição do tantas vezes tumultuado cenário urbano. Quando se está em repartições públicas, estabelecimentos para tratamentos de saúde e em velórios, entretanto, esses ruídos tornam-se mais do que incômodos, desrespeitosos.

Já no que diz respeito às lojas e outros estabelecimentos, o fundo musical, a meus ouvidos, é totalmente desnecessário e, mais do que isso, desconfortável e em regra irritante, seja pela altura do som ou pela seleção musical.

Entre entrar e comprar em uma loja silenciosa ou barulhenta, sem a menor dúvida opto pela silenciosa.

Tudo isso, porém, é questão de gosto.

Mas, sobretudo, também é questão de lei. Ou os estabelecimentos e veículos de som serão adequados às regras ou os fiscais lavrarão os autos de infração e as multas, de valor bastante atrativo ao erário, serão aplicadas, no valor de quatro  UFMs (Unidade Fiscal do Município) e, em caso de reincidência, resultarão  na apreensão de toda a aparelhagem emissora da fonte sonora e no recolhimento do veículo ou congênere.

Cada UFM, em 2019, vale R$ 232,19, o que representa uma multa de R$ 928,76 para a infração autuada.

Nota-se, ainda, que há outras leis municipais a disciplinar o uso de som automotivo em veículos particulares e também a emissão de ruídos decorrente de atividades industriais, comerciais, sociais ou recretativas. Antes de sair a fazer barulho por aí é bom se informar no setor competente da Prefeitura, para evitar denúncias e multas.

 

Barulho infernal, digo, eleitoral

Um ruído inconveniente que sempre desagradou e estorvou à maioria da população é aquele produzido durante as campanhas eleitorais, pelos carros de som que ininterruptamente circulavam por toda a cidade.

Nas próximas eleições municipais, no ano que vem, a circulação dos carros de som será bastante limitada, a menos que a legislação eleitoral e o Tribunal Superior Eleitoral mudem as regras vigentes.

O artigo 39, § 11, da Lei Federal nº 9.504/1997, que estabelece regras para o processo eleitoral, ganhou nova redação no ano passado, para dizer que  é permitida a circulação de carros de som e minitrios como meio de propaganda eleitoral, desde que observado o limite de oitenta decibéis de nível de pressão sonora, medido a sete metros de distância do veículo, e respeitadas as vedações previstas no § 3o deste artigo, apenas em carreatas, caminhadas e passeatas ou durante reuniões e comícios.                  

Ou seja, aqueles tormentosos carros de som enaltecendo as virtudes e apresentando as propostas e o jingles dos candidatos não serão mais permitidos durante a próxima corrida à Prefeitura e à Câmara Municipal, ficando reservados apenas para carreatas, passeatas, caminhadas, reuniões e comícios.

Os candidatos já podem, pois, ir pensando em outras estratégias para se fazerem conhecidos e terem seus nomes gravados na mente do eleitorado.

Discípulos do Capitão Symphrônio

Se até hoje a presença dos carros de som pela cidade a divulgar produtos, serviços e eventos não mobilizou suficientes denúncias que terminem em autuação por parte dos fiscais municipais, por certo será diferente na campanha eleitoral.

Haverá inúmeras pessoas de butuca, ávidas por identificar, filmar e denunciar os infratores, muito mais a fim de minar a campanha dos adversários do que fazer cumprir a lei.

Em pouco tempo São Roque haverá de ver se levantar um exército de discípulos do Capitão Symphrônio, mas, ao contrário dele, não estarão em busca da garantia da ordem na cidade e do sossego da população, mas com vistas a obter votos ou atrapalhar a campanha dos adversários.

* Simone Judica é advogada, jornalista e colunista do site www.vanderluiz.com.br (simonejudica@gmail.com.br)

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Simone Judica

Advogada e jornalista.

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