DO CENÁRIO DO CRIME AO VEREDITO DO POVO

Por: Simone Judica*
Por estes dias, é destaque na imprensa nacional e local, nas redes sociais e em rodas de conversas o julgamento popular de Júlio César Lima Ergesse, um dos três acusados pelo sequestro, morte e ocultação do cadáver da menina Vitória Gabrielly Guimarães Vaz, encontrada morta em 16 de junho do ano passado, em um matagal, em Araçariguama, oito dias após sair de sua casa para andar de patins e desaparecer.
O Júri Popular é tema complexo e rende opiniões e palpites de juristas, jornalistas e curiosos, o que por vezes atrapalha a compreensão do significado e da função desse importante instrumento da democracia.
A realização de um julgamento de grande repercussão em São Roque é a ocasião propícia a se oferecer esclarecimentos sobre o Tribunal do Júri.
Tribunal do Júri
Na legislação do Brasil, o Tribunal do Júri é um órgão do Poder Judiciário, composto por um juiz de Direito e 25 jurados, dos quais sete serão sorteados para o julgamento de cada causa.
O Tribunal reúne-se periodicamente para julgar apenas crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, ou seja, homicídio, feminicídio, participação em suicídio, infanticídio e aborto.

Origem do Tribunal do Júri
O Tribunal do Júri como hoje se vê surgiu na Inglaterra a partir de 1215, com a edição da Magna Carta, para garantir julgamentos imparciais, feitos por membros da sociedade, e assim impedir os desmandos do rei inglês João Sem Terra. Com esse mesmo caráter garantista, a instituição espalhou-se pela Europa.
Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude de julgamento de seus pares, segundo as leis do país.
Pares significam semelhantes, ou seja, outras pessoas do povo, não o monarca ou um representante do Estado.
Assim, a Justiça passou a ser confiada à sociedade.
Júri no Brasil
O Brasil, ainda colônia, herdou o Tribunal do Júri de Portugal em 1822, pela mão do Príncipe Regente D. Pedro de Alcântara.
No decorrer do tempo, o Júri no Brasil teve sua área de atuação ora ampliada, ora restrita. A atual Constituição Federal, de 1988, diz em seu artigo 5º, inciso XXXVIII:
“é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Plenitude de Defesa
Todo réu, por mais horripilante que se considere seu crime, tem o direito de ser defendido de modo pleno, integral e eficaz para produzir provas e alegações a seu favor e livrar-se de decisões injustas.
É um procedimento técnico e obrigatório, pois ninguém pode ser processado criminalmente sem assistência de advogado. Se o réu não pode contratar um defensor, terá um advogado nomeado pelo juiz para defendê-lo gratuitamente.
O advogado, deve, portanto, ser respeitado no exercício da sua função de defensor do acusado.
O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. (Artigo 133 da Constituição Federal)
Sigilo das votações
Para evitar constrangimentos, medos e pressões, os jurados votam em secreto. Apenas na presença do juiz, do promotor, do assistente de acusação, do advogado e de alguns funcionários do fórum eles recebem duas cédulas, uma contém a palavra “SIM” e outra a palavra “NÃO”.
A cada pergunta formulada pelo juiz sobre o caso, os jurados colocam em uma urna a cédula que representa sua opinião, sem que os demais vejam seu voto.
Soberania dos veredictos
Soberania significa autoridade suprema, enquanto veredicto é sinônimo de decisão. Logo, a palavra final a respeito do caso posto em julgamento é do povo, representado pelos jurados. O juiz apenas aplicará a pena, em caso de condenação.
Do cenário do crime ao veredito do povo
Acontecido um crime doloso contra a vida, o delegado de polícia instaura o inquérito policial para reunir provas que demonstrem a existência do delito e a identidade do criminoso.
O promotor inicia um processo penal a fim de provar que a pessoa indicada pelo delegado foi quem cometeu o crime e deve, pois, ser punida. O acusado tem o direito de defender-se. São ouvidas testemunhas, providenciada a reconstituição do crime, coletadas provas materiais, como armas e projéteis, vestígios de sangue, fios de cabelo, papéis, enfim, tudo o que possa ter ligação com o delito, suas motivação e autoria.
No caso de Vitória Gabrielly, os patins que a menina usava quando foi levada pelos sequestradores foram apreendidos e deverão ser exibidos durante o julgamento.

O juiz de Direito, convencido de que ocorreu um crime e há indícios de quem é o criminoso, emite a chamada sentença de pronúncia, por meio da qual determina que o réu seja julgado pelo Tribunal do Júri.
Vê-se que o juiz de Direito não julga o réu e não o diz culpado, mas, somente, manda que a sociedade analise se ele cometeu o crime e deve ser punido.
O convencimento do Juiz quanto à existência do crime e aos indícios sobre a identidade do criminoso, segundo a lei, apenas determinam que o caso vá a julgamento.
O julgamento
Os jurados são cidadãos indicados ao Poder Judiciário por órgãos públicos e privados e devem, segundo a lei, ter notória idoneidade moral e idade superior a 18 anos.
Selecionados os 7 jurados, o juiz diz-lhes as seguintes palavras:
Em nome da lei, concito-vos a examinar com imparcialidade esta causa e a proferir a vossa decisão, de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça.”
Cada Jurado, chamado pelo nome, deve responder:
Assim o prometo”.
Cumprido esse ritual, o juiz passa a coordenar a apresentação das provas, ouvindo-se as testemunhas e interrogando-se o réu.
Chega, enfim, o clímax dos julgamentos pelo Tribunal do Júri: os debates entre acusação e defesa, quando promotor e advogado, verbalmente, expõem aos jurados suas teses, no afã de convencê-los a condenar ou absolver o réu.
Tais discussões normalmente são acaloradas, pois é mediante a força dos argumentos, construídos a partir da análise das provas, que os jurados optarão por seguir a linha de raciocínio traçada por quem acusa ou quem defende o réu. São comuns os apartes, que incendeiam os ânimos dos oradores.
O promotor sempre fala primeiro. Afinal, ele é quem acusa e é dessa acusação que o advogado defenderá o réu. Cada um deles tem uma hora e meia para expor seus argumentos.
Querendo responder à defesa, o promotor pode discursar novamente, fazendo a chamada réplica. E, como as últimas ponderações pertencem ao defensor, a ele é conferida a tréplica, em que fará as derradeiras considerações quanto ao réu.
Encerradas as falas tem início a votação, que culminará na condenação ou absolvição do réu.
O juiz lê uma série de perguntas, baseadas nas teses da acusação e da Defesa, por meio das quais se extrairá a conclusão tão esperada: o réu será ou não condenado?
Vence a tese que obtiver maioria de votos. Munido desse resultado, o Juiz de Direito redige a sentença absolutória ou condenatória.
De volta à sala de julgamento, dominada pelo clima de suspense, todos levantam-se para ouvir a leitura da sentença e conhecer o tão esperado veredito do povo.
O júri do caso Vitória Gabrielly
Durante a preparação das matérias alusivas ao julgamento do réu Júlio César Lima Ergesse tive acesso a uma série de documentos e informações relativas ao caso e ao processo, várias delas inéditas. Embora o jornalista possa divulgar os fatos sem revelar a fonte, sempre é importante ponderar os valores que estão em jogo em cada caso concreto e escolher a alternativa que melhor representa a ética e o bem-estar das pessoas mais fragilizadas.
Entre colecionar mais um “furo de reportagem” e expor dados que, nesta situação em particular, apenas servem para satisfazer curiosidades e podem até atrapalhar o trabalho dos profissionais envolvidos na causa, optei por unir-me àqueles que prezam pelo respeito ao segredo de justiça decretado pelo juiz do processo e à memória da vítima, que era apenas uma criança.
Segunda-feira, durante o júri, tudo virá à tona e todos poderão conhecer os segredos que a justiça tem buscado preservar e o veredito que a sociedade de São Roque e Araçariguama, representada pelo corpo de jurados da Comarca de São Roque, dará ao réu.
Palavra da defesa
Os advogados Glauber Bez e Marcelo Ergesse Machado farão a defesa de Júlio César Lima Ergesse. Há dez anos atuando na área criminal, Glauber Bez considera o caso Vitória Gabrielly um dos mais complexos de sua carreira, devido aos mistérios que cercam o crime e à vasta gama de elementos probatórios que foram reunidos para se chegar até a pronúncia de seu cliente e do casal Bruno Marcel de Oliveira e Mayara Borges de Abrantes, que não será julgado no dia 21 em razão de um recurso pendente de julgamento no Tribunal de Justiça de São Paulo.

“Não é comum a defesa se deparar com um campo probatório tão extenso como o conjunto de provas que há no caso da Vitória Gabrielly, onde se encontram os mais diversos laudos periciais e um número elevado de testemunhas, além das investigações feitas com cães farejadores e o uso da substância química chamada luminol, para detectar vestígios de sangue”, afirmou Glauber Bez, que se encontra mergulhado no estudo do processo, que já reúne mais de duas mil páginas.
Perguntado a respeito da tese de defesa, Glauber Bez preferiu não adiantar qual linha será seguida.
O promotor de justiça de São Roque responsável pela parte acusatória, Washington Luiz Rodrigues Alves, declarou que não se manifestará antes do julgamento.
Para mais informações sobre o meio de ingresso ao salão de julgamento e outras orientações do Poder Judiciário quanto à organização do Júri, acesse o link:
* Simone Judica é advogada, jornalista e colunista do site www.vanderluiz.com.br (simonejudica@gmail.com.br)
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Parabéns, Vander, Simone pelo profissionalismo e ética na cobertura dessa ocorrência.