Professora Circe Bastos Santos: cento e três primaveras
Por: Simone Judica*
“Completar mais uma primavera” sempre me parece a expressão mais perfeita para dizer dos aniversários de minha querida e amável amiga e leitora Circe Bastos Santos, pois, embora nascida no inverno e há muito distante da juventude física que aos olhos humanos legitima a comparação entre a idade feminina e o frescor das flores, sua vida é um contínuo e viçoso desabrochar, de modo que ainda não descobri se ela é uma pessoa ou uma flor…
O que sei ao certo e muito me impressiona é que a doce Circe é o registro vivo de recordações e dados que trazem ao presente, numa narrativa lúcida e muito bem encadeada, não apenas suas infância e mocidade, a carreira no magistério e seu papel familiar, mas, também, a antiga e poética São Roque de outrora, cenário dos melhores e mais agradáveis anos de sua vida.
Em 17 de julho de 1917, o casarão da Praça da Matriz, ao lado da Padaria Guarany, viu nascer Circe, a quinta menina do casal Julieta e Antonino Dias Bastos.
Seus pais apreciavam a ideia de terem filhas professoras. Assim, uma após outra, concluídos os estudos primários no Grupo Escolar “Dr. Bernardino de Campos”, faziam-nas normalistas.
Antonino pediu ao amigo Antonio Francisco da Rosa, sobrinho do Barão de Piratininga, estabelecido em Sorocaba, que hospedasse Circe, para dar-lhe chance de estudar na Escola Normal Livre Municipal daquela cidade, então considerada distante. O favor foi concedido e, em 1933, ela formou-se professora.
O magistério sempre exigiu sacrifícios. “Iniciei a carreira como substituta, na escola isolada do Saboó, para onde ia sozinha, a cavalo ou de charrete. Porém, o corpo docente de São Roque estava completo, por isso passei anos lecionando em cidades espalhadas pelo interior paulista, como Álvares Machado, Martinópolis e Monte Azul, entre outras, até finalmente vagar uma classe no Grupo Escolar de Ibiúna, em 1943. Muitas vezes as saudades eram tantas, que as lágrimas me invadiam durante as aulas. Então ia perto da janela e chorava disfarçadamente, para as crianças não notarem”.
Abriu vaga em São Roque em 1945 e Circe, a cavalo, todos os dias partia rumo à escola isolada do Guaçu. Por fim, em 1949 conquistou sua tão almejada colocação no corpo de professoras das salas femininas no Grupo Escolar “Dr. Bernardino de Campos”, lecionando até se aposentar, em 1959.
“Sempre tive alunas muito boas e bem educadas. Eram filhas de médicos, comerciantes, operários, lixeiros, homens do campo, mas, dentro da sala de aula, eram todas iguais, respeitosas e dedicadas, e me dava muita alegria poder ensiná-las. Até hoje, quando me encontram, vêm me abraçar e relembramos com carinho e saudades os anos que passamos juntas”.
Enquanto lecionou fora, voltava para casa apenas nas férias. Todavia, sua cidade, seus familiares e amigos eram cativos em seus pensamentos e coração. “Para amenizar as saudades e não perder contato com o cotidiano de minha terra e minha gente, assinava O Democrata e me emocionava quando o carteiro entregava o jornal, porque ali estava uma parte de mim, que eu vivia de longe”. Assim, Circe não viveu junto aos seus as agitações da Revolução de 1932, mas acompanhou-as pelas páginas do velho semanário e soube, por carta, que sua mãe, Julieta, fez promessa de ir a Pirapora do Bom Jesus a pé, se o seu irmão Nego, apelido de Antonino Dias Bastos Junior, voltasse são e salvo dos campos de batalha.
Circe viveu muito além de estudos e trabalho. Moradora do centro da cidade e sempre envolvida em atividades sociais, religiosas e políticas, a família Bastos tinha vida social agitada e alegre. Fazer e receber visitas, organizar e prestigiar eventos paroquiais, frequentar quermesses, bailes na Literária e no São Paulo Clube, assistir aos filmes do Pavilhão Popular, dos Cines Central e São José, passear no Jardim e fazer o footing da Praça da Matriz impediam a monotonia de reinar por aqui.
Pretendentes não faltavam à graciosa professorinha, por onde passava. “Os mais insistentes foram o filho de um fazendeiro, dono das terras onde ficava uma escola rural em que lecionei, e um turco, muito rico, negociante de tecidos e outros artigos. Mas eram de longe e eu queria me casar em São Roque, para viver aqui”.
Os céus disseram amém e trouxeram Agenor dos Santos a sua casa, no dia do casamento de sua irmã Ruth com Benedito de Góes, o Nenê. O moço era tísico e veio a São Roque convalescer. Os ares puros daqui o curaram por completo. Farmacêutico dos bons, arranjou emprego na farmácia de Nenê de Góes e Dito César, na Rua Rui Barbosa, de onde avistava a venda e a casa de Antonino. Logo notou a mocinha bela e simpática que entrava e saía com cadernos na mão.
Casaram-se e foram muito felizes. Dessa união provêm a filha Maria Heloísa, falecida em 2017, dois netos e dois bisnetos.
Agenor partiu em 10 de maio de 1999, mas deixou Circe envolta nas mais lindas lembranças e saudades que brotam dos grandes amores.
Uma existência singela, mas nem por isso menos preciosa, marcante e íntegra. Circe é uma flor rara, que por onde passa exala eflúvios de ternura, afeto, meiguice, admiração, doçura, gentileza. Uma memória prodigiosa, mas, sobretudo, uma alma sensível, generosa e encantadora. Circe é um mimo.
Parabéns, querida tia Circe! Obrigada por existir, enfeitar e perfumar São Roque com seu jeitinho de flor.
P.S.: Esta crônica é fruto da entrevista que a professora Circe Bastos Santos concedeu-me em 16 de julho de 2018, no casarão da família Bastos.
Agradeço ao Marcus Bastos Santos, neto da professora Circe, pela gentil cessão das fotos do acervo da família Bastos Santos para enriquecer esta crônica.
P.S.: O alcance e o impacto da coluna São-roquices ultrapassam as fronteiras da nossa São Roque para atingir e tocar são-roquenses que, mesmo distantes fisicamente da cidade, mantêm-se conectados a nossas histórias, tradições, personagens e afetos.
Não há maior recompensa ao cumprimento de minha missão de escrever do que saber que minhas crônicas sensibilizam e evocam recordações que enternecem e aquecem meus leitores.
A história da Professora Circe Bastos Santos chegou ao querido Juca de Oliveira, são-roquense ilustre que eleva o nome de São Roque por onde tem transitado, em sua longa e grandiosa trajetória no mundo artístico.
Juca, então, gentil, carinhoso e entusiástico como só ele sabe ser, mandou-me seus cumprimentos generosos, que divido com todos os meus amigos e leitores, que igualmente me alegram e honram com cada palavra de estímulo e consideração.
Veja a mensagem de Juca de Oliveira e faça como ele, leia e comente a coluna São-roquices:
* Simone Judica é advogada, jornalista e colunista do site www.vanderluiz.com.br (simonejudica@gmail.com)
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