O DIA EM QUE MOSTRAR A FACE SE TORNOU CRIME

Por: Simone Judica*
Daqui a dezenas de anos, quando COVID-19 for apenas uma lembrança triste do passado, uma pessoa curiosa que vasculhar os noticiários paulistas do mês de maio de 2020 encontrará o decreto estadual assinado no dia quatro, por meio do qual o governador João Doria tornou obrigatório o uso de máscaras de proteção facial em todo o Estado de São Paulo, sob pena de punições administrativas e criminais a quem ousasse exibir a face por aí.
À primeira vista dessa pessoa do longínquo futuro, a medida parecerá arbitrária, abusiva e ditatorial. Um aprofundamento mínimo, porém, nos registros históricos e nas notícias do início dos anos 2020, revelará que o governador João Doria foi sensato. Mais do que isso, foi coerente com as determinações e orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que se desdobrou em esforços, tantas vezes em vão, para convencer governantes e povos a adotarem e incentivarem o isolamento social e a observarem as regras de higiene para tentar conter os avanços da vertente do coronavírus que a comunidade científica decidiu batizar de COVID-19.

João Doria decretou que, em território paulista, somente os mascarados poderiam circular. Quem mostrasse o rosto pelas ruas, praças, praias, campos ou jardins, na capital ou no interior, seria punido. Quem adentrasse a estabelecimentos públicos ou privados, fosse a trabalho ou compras, em busca de serviços ou informações, não poderia ter sua face descoberta. E, quem ousasse fazê-lo, restaria autuado em flagrante e enquadrado nos dispositivos do Código Sanitário do Estado!
Quando fiscais se deparassem com alguém sem máscara, a ordem do governador era clara: autuar o infrator. As penalidades foram escalonadas. A começar com advertências, evoluíam para multas que variavam de R$ 276,10 a R$ 276.100,00 e chegavam até mesmo à interdição total ou parcial de estabelecimentos.
Todavia, não bastou ao governador impor essas punições. Afinal, parte da população paulista – que há semanas vinha sendo exaustivamente esclarecida a respeito do quão necessárias eram as máscaras para a preservação da saúde – foi rebelde ao elegante esgoelar-se de João Doria em seus pronunciamentos diários para convencer seus governados a, por bem, transformarem a máscara em companheira inseparável das saídas às ruas.

Doria apelou para os rigores do vetusto Código Penal: quem afrontasse as determinações do decreto e ostentasse o rosto descoberto, durante a vigência da norma estadual que exigiu o uso de máscaras, seria considerado incurso nas penas de dois crimes: infração de medida sanitária preventiva e desobediência, ambos com penas de detenção, que variavam de um mês a três anos, e multa.
Pessoas acima de qualquer suspeita, que nunca antes se imaginaram taxadas de criminosas, foram conduzidas às Delegacias de Polícia e viram-se levadas às barras dos tribunais. A Justiça Criminal teve uma sobrecarga de processos, cujos réus e rés eram aqueles e aquelas que, teimosos, recusaram-se a ser temporariamente mascarados.
Fiscais, pelas ruas de todo o Estado, dia após dia flagravam rostos abusivamente desnudos, além de muitas pessoas a engendrar burlas à legislação, mediante o dependurar de máscaras nos queixos e nas orelhas, para rapidamente as puxar sobre bocas e narizes quando agentes públicos se aproximassem. Enganaram muitos homens e mulheres da lei, mas nunca foram capazes de ludibriar o ladino coronavírus.
Declarar-se inocente ao ser surpreendido em flagrante sem máscara se tornou motivo de chacota pública, afinal, a prova do crime, literalmente, estava na cara.
Apontou-se, também, um crescimento expressivo no número de inimizades e intrigas entre conhecidos e até amigos, já que os mais conscientes e zelosos pelo cumprimento da ordem do governador e, principalmente, cônscios da necessidade de evitar a transmissão do vírus, não aceitavam e não toleravam a negligência e o deboche daqueles que insistiam em deixar as ventas à mostra e passaram a denunciá-los. As redes sociais foram quase por completo tomadas por essas desavenças.
Muitos foram reincidentes nas condutas ilícitas e se tornaram devedores e criminosos contumazes, escorados na velha convicção de que a lei das máscaras “não pegaria” ou que as ordens do governador, as autuações em flagrante e as imposições de multas e penalidades “não dariam em nada”.
Aqueles que quiseram e souberam acatar o decreto e usaram suas máscaras com responsabilidade e em observância às regras estabelecidas pelas autoridades sanitárias e pelo governador, ao término da pandemia saíram livremente pelas ruas, com o seu mais entusiástico e emocionado sorriso no rosto, que todos, então, por inteiro puderam ver, como há muito tempo não se via.
Já aqueles que desprezaram as máscaras tornaram-se aliados do coronavírus e ajudaram o micróbio em sua saga destruidora. Muitos deles não sobreviveram, assim como também morreram diversos de seus familiares, amigos, colegas de trabalho e outras pessoas com quem interagiram em suas andanças irresponsáveis, alvejados por seus rastros de perdigotos espargidos durante suas bravatas de não tapar a boca e o nariz. Aos sobreviventes, nada resolveu, depois, lavarem suas caras deslavadas com lágrimas de remorso e arrependimento. O mal já estava consumado!

A esses, a lei dos homens não chegou a imputar o crime de homicídio e jamais houve estatística sobre a quantidade de pessoas afetadas por cada criatura desobediente ao decreto do uso das máscaras.
Entretanto, nos anais da justiça divina, cada carantonha exposta em vão ficou registrada e foi sabido quantas vidas foram vitimadas em face da irresponsável insistência em se exibir as faces, naquele tempo em que esse gesto era crime.
* Simone Judica é advogada, jornalista e colunista do site www.vanderluiz.com.br (simonejudica@gmail.com)
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