EPIDEMIA DE VARÍOLA DEIXA CERCA DE DUZENTOS MORTOS EM SÃO ROQUE
Instituto Vacinogênico de São Paulo, instalado em 1894, no bairro Cambucci. (foto: Assembleia Legislativa de São Paulo)
Por: Simone Judica*
Casos de sarampo confirmados desde o ano passado e recentes suspeitas da presença de pacientes infectados pelo coronavírus em São Roque tornam oportuno recordar que não é de hoje que a cidade está na rota das doenças que atingem a humanidade.
Em 1874 São Roque viveu um dos períodos mais catastróficos de sua história, quando intensa epidemia de varíola apavorou a cidade que, ao fim de quase um semestre, contabilizou aproximadamente oitocentas pessoas enfermas e duzentos mortos.
Como era a varíola, nas palavras de pesquisadores da Fiocruz (revista Manguinhos)
Os últimos dias da varíola, artigo publicado na seção Fio da História, da edição nº 8, da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, da Casa de Oswaldo Cruz – Fundação Oswaldo Cruz, mostra a gigantesca dimensão dessa doença infectocontagiosa exclusiva do ser humano, causada pelo vírus Orthopoxvirus variolae.
“Para que se tenha uma ideia de sua magnitude, só durante os 80 anos em que esteve ativa, no século passado, a varíola matou mais de 300 milhões de indivíduos. Esse número é bem superior ao de outras moléstias, como a tuberculose, a hanseníase, a gripe espanhola, a peste e até mesmo a Aids. Nem mesmo a soma do número de mortos de todas as guerras (inclusive as mundiais), superaria o de vítimas da varíola. Trata-se, portanto, certamente, da doença infecciosa que mais causou mortes na história da Humanidade”, narra o artigo.
Foto ilustrativa do artigo Os últimos dias da varíola, publicado na revista Manguinhos, da Fiocruz
Desde 1980, porém, a varíola é considerada erradicada, conforme declaração oficial da Organização Mundial de Saúde – OMS. Segundo o artigo citado acima, “a varíola foi extinta graças a uma série de programas, medidas e ações combinadas empreendidas, após 1967, pela OMS em diversos países e regiões do planeta”.
O primeiro caso de varíola em São Roque: um escravo alforriado
Pesa sobre o escravo alforriado Benedito Teixeira a responsabilidade de ser o primeiro são-roquense contaminado com a varíola, em 1874.
Informações transmitidas pela tradição oral ao professor Joaquim Silveira Santos, registradas na obra São Roque de outrora, relatam que o rapaz contraiu a enfermidade no bairro do Taboão, ao levar alguns animais para pastar.
No pasto, em que era comum trabalhadores de fora de São Roque e viajantes pararem para alimentar seus animais, Benedito Teixeira encontrou-se com um forasteiro varioloso e acabou enfermo. Naquele ano, a epidemia estava presentes em muitas cidades do litoral e do interior do Estado.
“Como havia naquele tempo afluência de trabalhadores vindos de fora, é natural que algum desses veiculasse moléstia para qualquer dos núcleos vizinhos, como o Taboão, e daí seria fácil comunicar-se à cidade”, explica o historiador de São Roque.
Àquela época em que as noções e práticas de saúde e higiene ainda eram bastante precárias, a população são-roquense foi presa fácil do vírus da varíola e rapidamente a doença aqui se alastrou.
A cidade pede socorro
São Roque não dispunha de estrutura e recursos para tratar os enfermos, amparar suas famílias e conter os avanços galopantes da varíola em uma comunidade que não havia recebido as vacinas que evitavam o contágio.
A Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Roque, embora oficialmente fundada há dois anos, em 1872, ainda não contava com um hospital e limitava-se a socorrer pessoas necessitadas por meio de assistência domiciliar, mediante o oferecimento de alimentos, roupas e remédios que seu tímido orçamento permitia.
Se é que havia médico e enfermeiros estabelecidos na cidade, não teriam locais, condições e medicamentos apropriados para cuidar dos doentes, que proliferavam assustadoramente.
Naquele tempo, era mais comum as cidades receberem a visita de médicos itinerantes e terem somente os chamados práticos, que exerciam as artes da medicina e da farmácia sem que fossem diplomados.
Em busca de soluções, a Câmara Municipal, em sessão realizada em 16 de agosto de 1874, deliberou adotar duas medidas, registradas em ata: “oficiar ao presidente da Província pedindo alguma providência sobre a varíola de que se acham acometidos vários infelizes deste município, e bem assim para enviar algumas lâminas de pus vacínico”, e nomear uma comissão, composta pelos vereadores José Marcolino de Campos (Juquinha de Campos), João de Deus Martins de Barros e Porfírio Tavares, “para se prosseguir com um assinado a fim de socorrer aos desvalidos atacados de varíola”.
O livro do professor Silveira Santos afirma que, nas atas posteriores da Câmara Municipal, não se leem informes sobre a chegada ou não de auxílio do governo da Província de São Paulo ou sobre providências que possam haver sido ultimadas pela comissão de vereadores formada para buscar soluções para o problema da varíola na cidade.
Já nos arquivos do Poder Legislativo do Estado de São Paulo existem registros de correspondências enviadas por vários municípios paulistas, inclusive São Roque, referentes a nomeações de vacinadores e implementação de normas relativas à vacinação nas posturas municipais.
Os bancos de dados para pesquisas, infelizmente, são precários e de difícil acesso, de modo que não se sabe se São Roque chegou a receber o vacinador para imunizar a população.
A epidemia de varíola de São Roque é destaque na imprensa paulista
Graças a relatos jornalísticos se pode saber mais a respeito dos dramáticos episódios, da intensidade e dos resultados devastadores da epidemia de varíola em São Roque .
Em 1874, o Correio Paulistano, da capital de São Paulo, publicou notas e transcreveu notícias veiculadas em dois periódicos sorocabanos, a Gazeta Comercial e o Ypanema, ambos a relatar os avanços da peste e as medidas adotadas para tentar contê-la. O jornal local O Sãoroquense também retrata a presença da varíola em São Roque.
O lazareto e a lista de donativos
Dizia a Gazeta Comercial, transcrita no Correio Paulistano de 15 de outubro de 1874, que em “São Roque continua lavrando com intensidade a epidemia (…) que o vulgo crê ser varíola. O exmo. sr. Barão de Piratininga, o sr. Antônio Xavier de Lima e outros humanitários cavalheiros, longe de cederem ao pânico que reina, conservaram-se na cidade, e a seus esforços deve-se a criação de um lazareto para o qual cedeu a sua vasta casa o filantropo cidadão José Caetano de Arruda. Um distinto capitalista desta praça enviou de sua bolsa para esse fim 200$ e ofereceu-se para tudo o que estivesse em suas forças. O número de vítimas tem-se aumentado”.
Edição do jornal Correio Paulistano, de 15 de outubro de 1874, noticia a epidemia de varíola em São Roque (arte: Simone Judica)
Esse hospital improvisado, destinado a tratar e isolar os enfermos, funcionou em um prédio que havia ao lado da igreja Matriz, à esquerda de quem desce, segundo explicação escrita nos anos 1930, pelo professor Joaquim Silveira Santos. Provavelmente esse casarão existia onde hoje se vê a agência do Banco Santander ou em local muito próximo a ela.
Em 28 de outubro de 1874, o Correio Paulistano trazia nota mais queixosa do que noticiosa, temperada com certa dose de veneno, assinada por Um sanroquense, na qual informava que, além do lazareto, alguns cidadãos promoveram “…uma subscrição cujo trabalho tem rendido dois contos e tantos para manter as faltas da pobreza. (…) É preciso fazer ver que as pessoas que regem ou tomam conta do depósito de mantimento têm-se esquecido de alguns pobres como o Sr. Wenceslau, Marcolino, Mariano e outros a proporção. Em vista disso precisa muita atenção porque todos são filhos de Deus e todos precisam, e nesse negócio de caridade não há capricho, e será bom que as coisas melhorem para não ser preciso censura”.
Uma cidade povoada por doentes, pobres, altruístas e corajosos
Pessoas mais abastadas retiraram-se da cidade para fugir da doença.
Cidade de São Roque vista da Estação (1870). (Foto: Arquivo Histórico Digital de São Roque)
“A varíola tem invadido a população de S. Roque, que está quase deserta. O pânico é geral: está gravemente enfermo o tabelião público Arruda Moraes (Chinhô da Boa Esperança). O juiz de Direito (dr. Fleury) e mais pessoas do povo e muitos cidadãos consta que se retiraram para a vila de Una”, noticiava o jornal Ypanema, de Sorocaba, na primeira quinzena de outubro de 1874.
O professor Silveira Santos pondera ser “…fácil imaginar a situação de penúria em que ficou a pobreza que não conseguiu retirar-se da cidade, e os penosos encargos dos que, embora não necessitados, tiveram de enfrentar as agruras daqueles dias sombrios. Casas comerciais fechadas, escassez de gêneros de primeira necessidade”.
Nessa conjuntura crítica, a bondade, a dedicação e a generosidade de um grupo de homens e mulheres foram fundamentais.
“Acontecia caírem doentes famílias inteiras que pereceriam à míngua, se não fosse o altruísmo daqueles que iam de casa em casa acudir aos enfermos com os socorros mais urgentes”, prossegue o historiador de São Roque.
Saldo devastador
A calamidade durou aproximadamente cinco meses, pois o primeiro caso de varíola surgiu em agosto e somente em dezembro do ano de 1874 a peste foi considerada extinta na cidade de São Roque.
O Chefe de Polícia local, em relatório oficial, assim se pronunciou: “A epidemia de São Roque tornou-se um dos maiores flagelos que tem sofrido o povo desta cidade. Foram afetadas 671 pessoas desde 18 de setembro de 1874, e faleceram 153, sendo 83 homens e 70 mulheres”.
Esses números, todavia, não refletem a realidade, pois a varíola já grassava na cidade em agosto daquele ano, conforme faz prova a ata da sessão da Câmara Municipal de 16 de agosto de 1874. Nos cálculos do professor Silveira Santos, “devia orçar, pois, por 800 o número de atacados, e por cerca de 200 os mortos”.
Próximos e curiosos capítulos
A epidemia de varíola em São Roque registra outros pontos muito interessantes e curiosos, dignos de nota, que meus leitores conhecerão na próxima edição da coluna São-roquices.
* Simone Judica é advogada, jornalista e colunista do site www.vanderluiz.com.br (simonejudica@gmail.com)
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