AS ETERNAS ABERRAÇÕES DOS CIRCOS DE HORRORES
Por: Simone Judica*
Entre os muitos adjetivos e denominações utilizados para classificar a reunião ministerial conduzida pelo presidente Jair Bolsonaro, em 22 de abril deste ano, cujo vídeo veio a público na sexta-feira passada (22 de maio), destaca-se, inclusive na imprensa internacional, o termo “show de horrores”. O jornal britânico The Guardian estampou essa expressão em sua manchete, ao noticiar o episódio, dias atrás.
O teor da reunião, explorado e exibido à exaustão pela mídia e pelas redes sociais, alvo de críticas e defesas ferrenhas, dispensa descrições e comentários, pois não há quem não viu a íntegra da gravação ou seu conteúdo parcial.
Ditos e expressões como esta – show ou circo de horrores – são incorporados ao vocabulário e utilizados de maneira recorrente, enquanto seu real sentido e sua origem muitas vezes caem no esquecimento, enterrados no passado.
Entre o século XVII e o início do XX, pessoas portadoras de anomalias eram consideradas atrações em circos de diversas partes do mundo. Quanto mais horrendas as aparências e maiores as anormalidades, mais curiosidades despertavam e maior era a plateia que acorria para vê-las.
Nesses espetáculos, muito comuns na Europa e nos Estados Unidos, os elencos eram compostos por anões e gigantes, mulheres barbadas, irmãos siameses, obesos mórbidos, pessoas deformadas, com aspectos monstruosos ou semelhantes a animais, crianças mutiladas, entre outras figuras consideradas assustadoras.
As programações quase sempre eram compostas por pessoas que nasceram com alguma deformidade ou adquiriram deformações em decorrência de doenças e, por isso, viviam escondidas em suas casas, manicômios ou outros locais distantes do convívio comunitário. Havia também muitas vítimas de intervenções e mutilações realizadas com o propósito exclusivo de produzir-lhes um aspecto aterrorizante, a fim de transformá-las em objeto de entretenimento nos circos de horrores.
Todavia, nem todas as figuras vistas nos circos de horrores eram forçadas a integrar o elenco. Muitos portadores de deficiências e deformações, sabedores de que outro espaço não encontrariam na sociedade, espontaneamente se ofereciam para fazer parte das trupes e seguiam com elas, para nunca mais retornar à convivência de suas famílias e a suas cidades ou aldeias. Vários deles souberam tirar proveito de sua desventura e ganharam muito dinheiro com isso.
Tamanha a presença dessas exibições na sociedade, em pontos fixos ou apresentações itinerantes, que os circos de horrores e seus personagens ganharam as páginas dos livros e as telas do cinema.
Dentro dessa temática, merece lembrança a magnífica obra de Victor Hugo, “O Homem que Ri” (L’Homme qui rit), escrita em 1869. O escritor francês faz um relato sombrio da natureza humana ao contar a história de grupos de malfeitores chamados de “comprachicos”, especializados na deformação física de pessoas, principalmente crianças.
A monstruosa e abominável prática, comum no século XVII e ainda presente no século XVIII, foi responsável por criar inúmeras aberrações humanas para serem exibidas nos circos e tendas de saltimbancos na Europa.
O Homem que Ri conta a história de Gwynplaine, um menino órfão que vai parar nas mãos de comprachicos e tem o rosto desfigurado por uma cirurgia nos lábios, que o condena a levar no semblante um triste e macabro sorriso permanente. Ao ser abandonado, tempos depois, Gwynplaine encontra em seu caminho Dea, uma menina cega. As duas crianças, em sua trajetória de infortúnios, acabam por se deparar com Ursus, um artista saltimbanco de coração generoso que decide abrigá-los. Juntos se tornam uma família e passam a apresentar-se em espetáculos populares para ganhar a vida. Assim segue o romance, posteriormente adaptado para um filme mudo, em 1928.
O circo de horrores também está presente no enredo do filme “O Homem Elefante” (1980), drama biográfico que conta a história real do inglês Joseph Merrick, acometido de uma doença que deformou noventa por cento de seu corpo. O pobre homem, extremamente sofrido e humilhado por familiares e pela comunidade desde a infância, virou atração na Inglaterra na segunda metade do século XVIII e alvo de exploração em razão de sua aparência. O filme, estrelado por Anthony Hopkins e John Hurt, foi premiadíssimo em diversos festivais e rendeu oito indicações ao Oscar.
Conhecidos na Europa e nos Estados Unidos como “freak show”, os circos de horrores persistiram até por volta da metade do século XX, quando finalmente as exibições passaram a ser consideradas atentatórias à dignidade humana e alvos de repúdio por parte de defensores dos direitos humanos. A evolução das ciências e da Medicina também contribuiu para o fim desses eventos.
Quem via e ouvia esses artistas circenses, não os esquecia. Eles angustiavam pensamentos e causavam pesadelos. Durante os espetáculos eram insultados pela plateia e, não raro, quando a exibição findava muitos deles eram agredidos.
Hoje, felizmente, práticas como essas, desenvolvidas pelos circos de horrores, não são mais permitidas. Mas, a expressão continua a ser usada para eventos e performances, públicas ou privadas, em que, aos olhos e ao juízo dos observadores, são detectadas aberrações de outra natureza, não mais física, mas moral e comportamental.
No século XXI, são outros os picadeiros, são outros os personagens. Cabe ao público, diante de cada espetáculo, avaliar se a expressão circo de horrores cai bem às performances que são oferecidas.
* Simone Judica é advogada, jornalista e colunista do site www.vanderluiz.com.br (simonejudica@gmail.com)
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